Universidades brasileiras: ações afirmativas transformam o perfil e democratizam o acesso

Em um País com uma população majoritariamente preta e parda – 55,2% dos 112,7 milhões de pessoas – e com 1,6 milhão de indígenas (0,8% da população), a diversidade etnorracial do Brasil levou tempo para ser visível entre os estudantes universitários. No entanto, nos últimos 20 anos, as ações afirmativas remodelaram o perfil da universidade brasileira, corrigindo uma limitação histórica e impactando positivamente os ambientes de produção de conhecimento e formação das futuras gerações. Esta é a análise dos sociólogos Luiz Augusto Campos e Márcia Lima.

Campos e Márcia são os responsáveis pelo livro “Impacto das Cotas: duas décadas de ação afirmativa no ensino superior brasileiro”, que oferece um balanço detalhado da política de cotas e aponta desafios futuros, como a permanência dos estudantes nas instituições.

A obra reúne 35 artigos que traçam a história da política de cotas desde seus primórdios, quando o então deputado Abdias Nascimento, em 1987, propôs um projeto de lei para implementar ações afirmativas na educação, após seu retorno do exílio nos Estados Unidos.

Desde então, o cenário universitário, que até o final dos anos 1990 era dominado por jovens brancos de classes média e alta, passou a incluir uma maioria de estudantes pretos, pardos e indígenas. Em 2021, esse grupo representava 52,4% dos matriculados em universidades públicas, um aumento significativo em comparação aos 31,5% registrados em 2001. No mesmo período, a presença de alunos das classes D e E saltou de 20% para 52%, evidenciando a dimensão econômica dessa transformação.

Esses avanços são minuciosamente explorados no livro. Os pesquisadores demonstram que as cotas democratizaram o acesso a um dos espaços mais elitizados da sociedade brasileira – a universidade – e redefiniram sua função social.

No prefácio do livro, Nilma Lino Gomes, professora e a primeira mulher negra a presidir uma universidade brasileira, recordou que a política enfrentou resistência do Congresso Nacional e de setores conservadores da sociedade até a aprovação da Lei 12.711, em 2012, com o respaldo do Supremo Tribunal Federal.

A partir da sanção da lei, observou Lino, as ações afirmativas “não apenas ampliaram o acesso à universidade, como provocaram mudanças nas práticas pedagógicas e curriculares, desestabilizando estruturas excludentes no sistema educacional”. Ela acrescentou que, com a adoção das ações afirmativas, especialmente na modalidade de cotas, as instituições federais de ensino superior passaram a atuar mais firmemente contra as desigualdades, não apenas em discursos, mas em ações concretas na gestão acadêmica, currículos, políticas de permanência, criação de Pró-reitorias de Ações Afirmativas, critérios de distribuição de recursos, normas disciplinares, pesquisa, extensão, internacionalização, e no combate a violações de direitos, racismo, LGBTfobia e machismo.

A Lei 12.711, de 2012, conhecida como Lei de Cotas, determinou que metade das vagas em instituições de ensino federais fosse destinada a estudantes da rede pública, com base em critérios etnoraciais e socioeconômicos. A lei foi atualizada em 2023, reforçando a prioridade dos cotistas no recebimento de auxílios essenciais para a permanência nas universidades, como bolsas e moradia, que podem ajudar na manutenção dos estudos.

O papel da sociedade civil e a refutação de mitos
O livro também resgata o papel fundamental da sociedade civil na implementação das cotas. Além de Abdias Nascimento, ativista dos direitos humanos, a obra menciona a Marcha Zumbi dos Palmares, na década de 1990, e a Conferência Mundial das Nações Unidas (ONU) contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e Intolerância, realizada na África do Sul em 2001. No que diz respeito às universidades privadas, o estudo destaca o impacto do Programa Universidade para Todos (Prouni), de 2005, que ofereceu bolsas de graduação em troca de benefícios fiscais e contribuiu para a mudança no perfil do estudante.

Mitos que surgiram no início da política, como a suposta baixa performance dos cotistas que diminuiria o nível das universidades, são abordados e refutados na obra. Os textos mostram que, embora cotistas possam ingressar com notas ligeiramente menores no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), seu desempenho acadêmico, medido por notas semestrais, é similar ao dos demais alunos. Luiz Augusto Campos e Márcia Lima afirmam: “Diferentes medidas mostram que cotistas e não cotistas tendem a ter desempenho universitário muito similar, bem como taxas próximas de evasão.”

A pesquisa também apresenta um mapeamento detalhado da implementação das cotas em universidades como a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), pioneira na adoção, a Universidade de Brasília (UnB), a Universidade Federal da Bahia (UFBA), a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

O livro é resultado da colaboração entre oito centros de pesquisa espalhados pelo Brasil, coordenados pelo Afro Cebrap e pelo Grupo de Estudos Multidisciplinar da Ação Afirmativa (Gemaa), este último vinculado à Uerj.

Reflexões sobre diversidade e desafios futuros
Em entrevista à Agência Brasil, Márcia Lima comentou sobre o valor da diversidade nas universidades: “Formar pessoas e produzir conhecimento são objetivos cruciais da universidade. Nesse sentido, a diversidade contribui de forma inequívoca para agregar qualidade ao conhecimento científico. Diversidade também diz respeito à justiça social e equidade. Instituições de ensino, em especial instituições públicas, têm o dever de garantir acesso a diferentes grupos. O grande impacto das cotas é a transformação dos espaços responsáveis pelo conhecimento e pela formação das novas gerações.”

Ao ser questionado sobre a ideia de que a universidade pública estaria “à deriva” devido ao suposto abandono das elites e classes populares, Luiz Augusto Campos esclareceu: “Para a Folha, tentei deixar claro que é mito a ideia de que as elites não dependem mais da universidade pública. O grosso das elites brasileiras não têm recursos para pagar as caras universidades estrangeiras e, por isso, ainda recorrem à universidade pública e gratuita para obter diplomas e reproduzir seu estatuto de classe. O que mudou nesse quesito é que essa elite não vê mais a universidade pública como sua propriedade exclusiva, em grande medida por conta do advento das cotas e, por isso, não está mais disposta a defendê-la como antes. Ao mesmo tempo, ainda que a inclusão tenha aumentado, a maior parte das classes populares permanece fora da universidade pública que, por isso, fica sem defesa no debate político.”

Sobre a sustentabilidade da política de cotas diante do contingenciamento de recursos, Márcia Lima afirmou: “A política de permanência [nas universidades] foi esvaziada no governo anterior e tem sido retomada – ainda que com limitações orçamentárias – na gestão atual. Mesmo com esse desafio, a política de cotas já tem promovido enorme transformação no perfil discente e docente das universidades. A ausência de investimento afeta toda e qualquer política educacional. Não seria diferente com as ações afirmativas. É importante lembrar o que aconteceu nas gestões de Michel Temer e Jair Bolsonaro. Assim como em outras políticas, coube ao atual governo recomeçar e revisar a lei. A nova lei de cotas procura avançar nas limitações identificadas no estudo.”

Questionado sobre a necessidade de defender as cotas em um mercado de trabalho que ainda apresenta racismo, Luiz Augusto Campos pontuou: “É falso dizer que a ascensão social pela educação é um mito. A rigor, a maior parte dos estudos de mobilidade social mostra que a ascensão social vem, em grande medida, da educação em geral e, mais especificamente, da educação superior. É claro que a expansão do número de pessoas com ensino superior reduz, com o tempo, o valor do diploma, mas esse estrato da população ainda é pequeno no Brasil, menos por exemplo do que em países similares como Chile, Estados Unidos e Coreia do Sul. Isso não exclui, contudo, a persistência do racismo no mercado de trabalho, mesmo quando olhamos as oportunidades sociais de negros diplomados. Daí a importância de combinarmos ações afirmativas na educação superior e no mercado de trabalho.”

Márcia Lima também abordou a questão do “Pacto Narcísico da Branquitude” e o papel das cotas em seu rompimento: “A diversidade racial das universidades brasileiras, sem dúvida, colocou em xeque e expôs a imensa desigualdade racial no acesso ao ensino superior. A chegada de um público mais diverso social e racialmente impactou o debate público sobre o papel da universidade, ampliou temas de pesquisa. Em algumas áreas de conhecimento vemos um questionamento crescente sobre a ausência de autoras e autores negros. Portanto, a universidade deixou de ser um espaço majoritariamente branco onde esse pacto era constantemente validado.”

Por fim, Luiz Augusto Campos discutiu a possibilidade de as cotas gerarem um debate racial mais aprofundado no Brasil: “As cotas já remodelaram o debate sobre raça no Brasil. Antes delas, na década de 1990, o tema era um tabu. O Brasil era encarado como uma democracia racial, livre de racismo e com uma população totalmente mestiça. Hoje, o cenário é outro. O racismo é objeto de debates em todos os círculos sociais e as políticas públicas antirracistas são uma realidade. Isso não foi suficiente, porém, para evitar retrocesso. À direita e à esquerda do espectro político, emergiu a crítica ao chamado ‘identitarismo’, conceito pouco claro, mas que vem sendo usado para limitar as conquistas recentes. A ideia de meritocracia também continua forte, seja pela valorização dos privilégios herdados de uma elite branca, seja pela difusão desse discurso pelos chamados novos empreendedores. De todo modo, cabe ao futuro e à luta política determinarem se esse debate irá ou não se aprofundar.” Com informações da Agência Brasil

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