Gravidez infantil: mais de 14 mil meninas se tornam mães, com baixo acesso ao aborto legal
Em 2023, cerca de 14 mil meninas com idades entre 10 e 14 anos tiveram filhos no Brasil. Desse total, apenas 154 conseguiram acesso ao aborto legal. É crucial ressaltar que crianças de até 14 anos são as maiores vítimas de violência sexual no país. Adicionalmente, a legislação brasileira presume que todas as gestações nessa faixa etária são decorrentes de estupro, uma vez que a idade de consentimento para relações sexuais é a partir dos 14 anos. Dessa forma, todas essas meninas teriam direito à interrupção da gravidez, mas o número de procedimentos realizados correspondeu a apenas 1,1% do total de gestações concluídas.
“Uma menina não engravida, ela é engravidada. Nós não podemos imputar a ela essa responsabilidade. E a gente tem que se referir a esses casos como gravidez infantil, gravidez de criança”, enfatizou Ida Peréa Monteiro, presidente da Associação de Obstetrícia de Rondônia, que apresentou os dados no Congresso de Ginecologia e Obstetrícia, realizado na última semana no Rio de Janeiro.
“É uma tragédia que revela um fracasso coletivo e tem consequências graves: a interrupção da trajetória educacional, o comprometimento do desenvolvimento físico e emocional, a reprodução do ciclo de pobreza e exclusão social e o maior risco de complicações obstétricas e de mortalidade materna e infantil”, alertou Ida.
A especialista lembrou que, desde 2017, todos os casos de gestação infantil devem ser notificados ao Ministério da Saúde e às autoridades de segurança, justamente por serem considerados estupro presumido, independentemente das circunstâncias. Além disso, as meninas devem ser informadas imediatamente sobre o direito de interromper a gestação de forma legal, pelo Serviço Único de Saúde (SUS), caso desejem. No entanto, na prática, segundo Ida, poucas recebem as orientações adequadas, e esse direito também é dificultado pela escassez de hospitais que realizam o procedimento – atualmente, são menos de 100 em todo o Brasil.
Entraves e a objeção de consciência
O médico Olímpio Barbosa de Morais Filho, diretor-médico do Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (Cisam), em Recife, um dos hospitais de referência em abortamento legal, acredita que o direito à interrupção da gravidez é, muitas vezes, negado propositalmente por pessoas em diversas instituições que são contrárias ao aborto. Ele reforça o compromisso ético e humanitário dos profissionais de saúde.
“A objeção de consciência é relativa, não é absoluta. E é o nosso papel, mesmo quando você tem objeção de consciência, informar a pessoa sobre os seus direitos. Porque ela tem direito à saúde e você escolheu se preocupar com a saúde de terceiros. Provavelmente, se fosse oferecido o aborto legal, a grande maioria dessas meninas teria expressado esse desejo. Ou muitas vezes, elas até expressam, mas as portas são fechadas”, afirma o obstetra.
De acordo com o médico, os profissionais que identificam uma gravidez infantil também têm o compromisso de ajudar as vítimas a terem seu desejo respeitado. “O direito à interrupção é da menina, não cabe interferência da família ou de profissionais. Se a decisão da família é conflitante com a decisão da menina, a gente precisa buscar a decisão judicial para suprir esse consentimento através do Ministério Público, da Defensoria Pública, porque quanto mais tempo demora, mais você está submetendo aquela menina a sofrimento”.
Morais é um defensor antigo do acesso pleno e humanizado ao aborto legal, mas se tornou ainda mais conhecido – e alvo de ataques – após receber no Cisam uma menina de 10 anos, grávida após violência sexual, que não havia sido atendida na unidade de referência do Espírito Santo, onde morava, por já estar com 22 semanas de gestação. O caso ocorreu em 2020 e gerou grande mobilização da opinião pública.
Desde aquele ano, diversas iniciativas tentam limitar a idade gestacional para o aborto, o que não existe na legislação atual, incluindo o projeto de lei que pretendia equiparar a interrupção da gravidez, após 22 semanas, ao crime de homicídio, apelidado de “PL do Estupro” por organizações feministas e de defesa dos direitos da criança.
O diretor do Cisam avalia que o objetivo dessas iniciativas é inviabilizar o aborto legal de forma geral e alerta que essa limitação prejudicaria especialmente crianças e adolescentes vítimas de violência. “Como o agressor em cerca de 70% das vezes é uma pessoa da família ou próxima, essa pessoa tem um poder muito grande sobre essa criança e ela não sabe que está grávida ou tem medo de que as pessoas descubram. Isso só acontece quando a barriga cresce, o que demora. E às vezes quando procura uma unidade de saúde, para ter direito ao aborto, o procedimento é adiado”, explica o diretor do Cisam.
Mortalidade materna e negligência institucional
Essa demora também agrava outro drama relacionado à gravidez infantil: o risco de complicações e de mortalidade. A obstetra Ida Peréa Monteiro aponta que a razão de morte materna entre meninas de 10 a 14 anos é de cerca de 50 casos a cada 100 mil nascidos vivos, número que cai para 26 na faixa etária dos 20 a 24 anos. Entre 2019 e 2023, 51 meninas morreram em consequência da gravidez, por causas como eclampsia, infecção generalizada e complicações de abortos realizados clandestinamente.
“A mortalidade materna infantil é um desfecho extremo da violência sexual e da negligência institucional. Somos nós falhando como sociedade. Nós temos que proteger nossas meninas para que elas possam crescer, estudar e prosperar”, conclui Ida. Com informações da Agência Brasil.