O legado indígena: como povos originários moldaram a diversidade da mandioca nas Américas

Uma pesquisa publicada na renomada revista Science revelou que os povos indígenas desempenharam um papel fundamental na geração de diversidade e na dispersão da mandioca no continente americano, muito antes da chegada dos colonizadores europeus. O estudo, conduzido por cientistas da Embrapa e de instituições dos Estados Unidos, Canadá, Reino Unido, Alemanha, Dinamarca, Bolívia e Chile, analisou o genoma de 573 variedades da planta e identificou um forte parentesco genético entre elas. Segundo os pesquisadores, essa profunda conexão foi impulsionada por práticas ancestrais, como a troca de variedades entre aldeias e a seleção de plantas que cresciam espontaneamente, garantindo a propagação de clones de alta qualidade ao longo de séculos.

Fábio Freitas, pesquisador da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia (DF) e um dos autores do estudo, explica que a análise do código genético de amostras de mandioca e de seus parentes selvagens, distribuídos desde os Estados Unidos até o Chile, teve como objetivo traçar um panorama detalhado da evolução da diversidade da mandioca no continente.

Desvendando o passado: amostra arqueológica de 2 mil anos
Para a realização deste feito científico, os pesquisadores recorreram a diversas fontes, incluindo coleções de bancos genéticos, amostras de exsicatas (partes secas e prensadas de plantas, utilizadas para identificação) de herbários, variedades tradicionais cultivadas por povos indígenas e, notavelmente, até uma amostra arqueológica. “Nós conseguimos sequenciar um leque muito amplo de espécies e variedades, tanto no espaço quanto no tempo. Temos amostras coletadas no ano passado, outras obtidas há mais de 100 anos e até uma amostra arqueológica com 2 mil anos”, destaca Freitas, ressaltando a abrangência temporal da pesquisa.

Segundo o pesquisador, a mandioca foi domesticada há mais de seis mil anos na região sul da Amazônia, em uma área que hoje corresponde aos estados brasileiros do Acre e de Rondônia. A partir desse centro de origem, a cultura se espalhou por todo o continente e além. No entanto, diferentemente do que se observa em espécies de propagação sexual por sementes, como o milho, onde é possível identificar linhas evolutivas claras (com variações genéticas mais profundas quanto maior a distância geográfica do centro de origem), esse padrão não foi percebido na mandioca.

“Na mandioca, toda a diversidade existente entre as diferentes amostras está mais ou menos espalhada de forma uniforme, independentemente da distância da borda sul da Amazônia, de onde saíram as primeiras populações domesticadas”, ressalta. “É como se todas as plantas fossem parentes muito próximas, muitas das quais como mãe e filha. Por exemplo, comparamos uma amostra coletada em Cuba, em 1904, e constatamos que, geneticamente, ela é filha de outra planta coletada na Amazônia, em 1961. Isso mostra como a dispersão dessa cultura, promovida pelos povos indígenas e, ao mesmo tempo, a manutenção de determinadas variedades geração após geração, foi extremamente eficiente ao longo dos séculos”, explica.

Diversidade genética e o papel da cultura indígena
Para compreender como essa ampla diversidade foi mantida e disseminada, é fundamental entender a biologia da mandioca. A planta é propagada predominantemente por clonagem, ou seja, novos cultivos são formados a partir de pedaços da planta original, conhecidos como manivas, sem a necessidade de sementes. Isso significa que plantas com o mesmo código genético podem ser cultivadas por muitos anos. Embora esse tipo de reprodução traga inúmeras vantagens agrícolas, poderia, em tese, levar à perda de diversidade genética devido ao acúmulo de mutações deletérias (alterações no DNA que podem diminuir a capacidade reprodutiva e de adaptação de um organismo). No entanto, a pesquisa revelou que a mandioca manteve uma variabilidade surpreendente ao longo do tempo.

Isso ocorre porque a mandioca apresentou um nível de heterozigosidade acima do esperado (inclusive maior do que o da espécie silvestre). Isso significa que uma mesma planta pode ter variação genética entre os dois alelos do mesmo gene contidos nos pares de cromossomos homólogos, mesmo sendo clonada. Ou seja, um clone, às vezes, pode apresentar a característica herdada pela planta mãe e, outras vezes, pelo pai. Esse fator funciona como um “buffer” genético, uma espécie de seguro natural que protege a cultura de mutações prejudiciais e a torna mais resistente a mudanças ambientais, como seca, pragas ou solos pobres.

Além disso, as práticas tradicionais das comunidades indígenas contribuíram ativamente para a preservação e ampliação da diversidade genética da mandioca. Um exemplo notável é a Casa de Kukurro, uma tradição do povo Waurá, que habita o Território Indígena do Xingu, em Mato Grosso. Parte do ritual consiste em reunir todas as variedades de mandioca em dois montes ou covas, a cerca de 40 metros um do outro. Acredita-se que essa prática fortaleça a energia das plantas. Na prática, a Casa de Kukurro permite o cruzamento de diferentes variedades, promovendo o surgimento de novas plantas, estas de forma espontânea, por semente. As plantas resultantes são avaliadas, selecionadas e, se aprovadas, incorporadas à coleção de variedades de mandioca que já possuem.

Na aldeia Ulupuwene, no Alto Xingu, o agricultor Tapaiê Waurá realiza esse ritual sempre que abre um novo campo de cultivo de mandioca. Em 2018, o evento foi registrado pela primeira vez em vídeo pelo pesquisador Fábio Freitas e pelo videomaker Celso Viviani, da produtora Rentalpix. Eles retornaram à aldeia em 2019 para acompanhar a colheita e a seleção das novas variedades. O material resultou no documentário “Casa de Kukurro”, disponível no YouTube.

Mais do que um ritual, a Casa de Kukurro representa uma estratégia eficiente de melhoramento genético da mandioca. “Essa tradição do povo Waurá funciona como um banco genético que permite não apenas a conservação das variedades que já possuem, mas também estimula o surgimento de novas variedades e a ampliação da diversidade da cultura no local. Os povos tradicionais multiplicam e selecionam novos materiais, mantendo aqueles que apresentam características agronômicas, culturais e nutricionais de interesse para a aldeia”, explica Freitas.

Siglia Souza/Embrapa

Esforço histórico de coleta e novas perspectivas para a pesquisa
Os resultados do estudo só foram possíveis graças a um esforço histórico da pesquisa agropecuária na coleta e análise de amostras de espécies selvagens do gênero Manihot e de variedades da espécie cultivada. O sequenciamento de 573 genomas foi viabilizado pela vasta diversidade das coleções de mandioca da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia, da Embrapa Cerrados e da Embrapa Mandioca e Fruticultura, que reúnem plantas de diversas proveniências geográficas e coletadas ao longo de um extenso período.

“Diversos pesquisadores e técnicos trabalharam e ainda pesquisam há décadas esse gênero, que hoje é preservado em bancos de conservação espalhados por diferentes Unidades da Embrapa, além de coleções de DNA e herbários”, conta Freitas. O herbário da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia, por exemplo, abriga a maior coleção de amostras de parentes selvagens da mandioca.

Na visão do pesquisador, o aprofundamento do estudo sobre a história evolutiva e a diversidade da mandioca permitirá compreender melhor suas características e, assim, aprimorar estratégias de conservação e melhoramento da espécie.

A pesquisa abre novas perspectivas para o melhoramento genético da mandioca. A diversidade presente nos bancos de sementes do solo e a seleção de variedades espontâneas têm sido fundamentais para gerar novos genótipos (indivíduos que, após cruzamentos, podem se tornar variedades). “O estudo demonstrou que o cultivo tradicional da mandioca pode fornecer informações valiosas para o desenvolvimento de novos clones superiores e abre amplas possibilidades para a seleção de combinações parentais que maximizem a variância e a média de atributos agronômicos importantes”, explica Éder Jorge de Oliveira, pesquisador e melhorista da Embrapa Mandioca e Fruticultura (BA), centro que contribuiu com dados genéticos de sua coleção de trabalho e com análises prévias da diversidade da mandioca.

A ênfase na diversidade genética também pode ser essencial para enfrentar desafios emergentes, como a vassoura de bruxa, recentemente identificada no estado do Amapá. “A conservação de genótipos geneticamente diversificados pode facilitar a identificação de genes de resistência, permitindo o desenvolvimento de cultivares mais tolerantes a essa e outras ameaças”, explica Oliveira.

A Embrapa Cerrados, por sua vez, levou ao estudo materiais cultivados e preservados há gerações por comunidades da região do Cerrado, além de acessos de melhoramento genético com características distintas, como variações na cor da polpa e da raiz, resistência a pragas e doenças, diferenças nos teores de ácido cianídrico e variedades de mandioca açucarada, entre outras. “A ideia era que, com essa base, pudéssemos estudar a diversidade genética da mandioca de forma mais ampla”, destacou o pesquisador Eduardo Alano, que também assina o artigo.

Alano faz parte da equipe que atua no programa de melhoramento genético da mandioca para as condições do Cerrado brasileiro e tem como base genética o banco de germoplasma da Unidade, que atualmente conta com 300 acessos representativos da diversidade genética da cultura no bioma. “Para o estudo, buscamos fazer uma amostragem da melhor forma possível para representar a diversidade genética do nosso banco de germoplasma”, explicou.

Para ele, os resultados obtidos são extremamente valiosos, pois permitem avanços mais rápidos no programa de melhoramento genético. “Esse conhecimento nos ajuda a entender o passado, compreender o presente e projetar o futuro da cultura da mandioca. Esse tipo de trabalho é essencial para isso”, ressaltou.

Você comeria um clone? A mandioca explica!
A resposta é sim! Todos os dias, consumimos clones sem perceber. Mas esqueça os filmes de ficção científica ou a novela O Clone. Na ciência, um clone nada mais é do que uma cópia genética exata de um organismo, ou seja, um ser vivo com o mesmo DNA do original.

A clonagem é extremamente comum no reino vegetal. Muitas espécies, como batata, banana, abacaxi e mandioca, são cultivadas a partir de pedaços de suas próprias estruturas, como caules ou raízes. No caso da mandioca, planta-se um pedaço do caule, a maniva, de onde nascem novas plantas geneticamente idênticas à original.

Essa reprodução por clonagem tem vantagens para a agricultura, pois garante uma produção padronizada e previsível. No entanto, a falta de diversidade genética pode ser um risco: se todas as plantas forem idênticas, uma doença ou outra condição adversa pode devastar uma plantação inteira.

A mandioca, contudo, desafia essa lógica. O estudo publicado na Science demonstrou que essa cultura manteve uma diversidade genética surpreendente graças ao seu alto grau de heterozigosidade. Isso significa que, mesmo sendo clonada, a mandioca possui diferentes alelos em seus genes em cada planta, tornando-a mais resistente a doenças, pragas e variações ambientais.

Colaboração internacional: 19 instituições de oito países
O estudo internacional contou com a participação de 19 instituições de oito países: Smithsonian Institute (EUA), Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia (Brasil); Royal Botanic Gardens (Reino Unido), Max Planck Institute of Geoanthropology (Alemanha), University of Copenhagen (Dinamarca), Museo de Historia Natural Noel Kempff Mercado (Bolívia), University of Washington (EUA), Embrapa Mandioca e Fruticultura (Brasil), Embrapa Cerrados (Brasil), University of Warwick (Reino Unido), American Museum of Natural History (EUA), McMaster University (Canadá), University of Portsmouth (Reino Unido), University of Virginia (EUA), University of York (Reino Unido), Texas A&M University (EUA), Museo Chileno de Arte Precolombiano (Chile), Universidad de Tarapacá (Chile), e The Pennsylvania State University (EUA). Com informações da Embrapa

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