Desvendando o programa nuclear do Irã: peça-chave na disputa por hegemonia no Oriente Médio

Há mais de três décadas, o Irã é alvo de acusações por parte de Israel, que alega que o país persa busca desenvolver armas nucleares, representando um “perigo existencial” para o Estado judeu. Essa suposta ameaça tem sido usada para justificar a recente guerra no Oriente Médio, com desdobramentos imprevisíveis.

Mas, afinal, qual a verdadeira história por trás do programa nuclear iraniano? E por que as potências ocidentais questionam o projeto de Teerã, mas não exigem a mesma transparência de Israel, o único país da região que não aderiu ao Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP)?

Para analistas em geopolítica consultados pela Agência Brasil, a guerra em curso tem como objetivo primordial o enfraquecimento militar e econômico do Irã, visando consolidar a hegemonia de Israel em todo o Oriente Médio. Além disso, especialistas levantam a hipótese de que a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) pode estar sendo manipulada, especialmente após o recente anúncio de que o Irã não estaria cumprindo suas obrigações com o TNP.

A diplomacia do Brasil e as negociações frustradas
Ao contrário de Israel, o Irã sempre submeteu seu programa nuclear a inspeções internacionais. Em 2012, com a mediação diplomática do Brasil, o Irã aceitou uma proposta do governo dos Estados Unidos (EUA) para controlar o enriquecimento de urânio. No entanto, o então presidente Barack Obama recuou de sua própria proposta, mantendo as sanções contra o governo de Teerã.

Após o fracasso dessas negociações, o professor de história da Universidade de Brasília (UnB), Luiz Alberto Moniz Bandeira, em seu livro “A Segunda Guerra Fria” (lançado em 2013), já avaliava que o conflito em torno do programa nuclear iraniano, visto como “ameaça existencial [a Israel]”, “nunca passou de engodo para encobrir as contradições de poder e de predomínio na região”.

Concordando com Bandeira, o cientista político Ali Ramos, especialista em estudos sobre a Ásia e o mundo islâmico, afirmou à Agência Brasil que Israel e as potências ocidentais buscam, com a atual guerra, impor a hegemonia política, militar e econômica de Tel Aviv em todo o Oriente Médio.

“Israel não aceita que nenhum dos seus vizinhos tenha indústria ou poderio econômico para se tornar uma potência hegemônica na região. Para ter hegemonia, Israel não depende só que o país não tenha armamento nuclear, depende também que o país esteja sempre empobrecido”, avalia Ramos.

Já o professor de relações internacionais Robson Valdez, do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), destacou que a atual guerra se insere no contexto do conflito na Faixa de Gaza e que a AIEA pode estar sendo instrumentalizada para justificar a agressão ao Irã. “Essa mudança na abordagem da AIEA tem que ser avaliada também dentro desse contexto de provável instrumentalização da agência para legitimar a entrada dos EUA no conflito geral do Oriente Médio. A meu ver, [o primeiro-ministro de Israel, Benjamin] Netanyahu busca obter, de forma definitiva, a superioridade militar em toda região”, disse Valdez.

As raízes do programa nuclear iraniano
O renomado historiador brasileiro Moniz Bandeira registrou que o programa nuclear do Irã teve início na década de 1960, com o apoio da Alemanha e dos EUA, durante os 25 anos do governo do Xá Reza Pahlavi.

Apoiado pelo Ocidente, o regime ditatorial de Pahlavi ascendeu ao poder após um golpe de Estado em 1953, promovido pela CIA e outras agências de potências ocidentais. Esse golpe derrubou o governo nacionalista de Mohammed Mossadegh, que havia nacionalizado os ricos poços de petróleo iranianos, contrariando os interesses das petroleiras ocidentais.

Em 1979, o Xá foi deposto pela Revolução Iraniana, que, segundo Moniz Bandeira, “acabou com a subordinação do Irã às potências ocidentais”. Contudo, o aiatolá Khomeini, líder supremo do país, declarou que as bombas atômicas eram contrárias aos princípios do Islã e emitiu um fatwâ (espécie de resolução de autoridade religiosa islâmica) proibindo seu desenvolvimento.

Somente em 1989, após a morte de Khomeini, o novo aiatolá Ali Khamenei retomou o programa nuclear, sempre negando qualquer intenção de construir armas nucleares. Desde então, o país busca um acordo com a AIEA. Em 2005, um novo fatwâ reiterou a proibição da produção, armazenamento e uso de armas nucleares.

O analista geopolítico Ali Ramos considera que o programa nuclear do Irã sempre foi uma necessidade energética. “O Irã tem um problema histórico, desde a época do xá, para criação de energia, para desenvolver sua indústria. O Irã tem algumas usinas nucleares por isso”, explicou.

Moniz Bandeira, por sua vez, comparou o programa nuclear iraniano ao projeto de nacionalização da indústria de petróleo de Mossadegh antes do golpe de 1953, descrevendo-o como “uma afirmação do orgulho Pérsia contra a tutelagem do Ocidente”.

A complexidade do acordo de 2015 e a saída dos EUA
Em 2012, as diplomacias do Brasil e da Turquia mediaram, a pedido dos Estados Unidos, um acordo com o governo iraniano. O governo do então presidente Mahmoud Ahmadinejad aceitou a proposta da AIEA e do governo Obama de transferir 1,2 mil quilos de urânio pouco enriquecido (LED) para a Turquia, em troca de combustível para suas usinas nucleares fornecido pela Rússia.

As negociações foram conduzidas pelo então ministro das Relações Exteriores do Brasil, o embaixador Celso Amorim, hoje assessor especial do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. “A declaração de Teerã atendeu, precisamente, todos os quesitos do presidente Obama. Ao ver que as gestões diplomáticas do Brasil e da Turquia alcançaram êxito, o presidente Obama traiu. Recuou”, explicou Moniz Bandeira. O historiador brasileiro concluiu que, na verdade, o objetivo de Obama não era um acordo, mas sim a queda do regime xiita dos aiatolás “mediante novas sanções, que pudessem entravar o desenvolvimento econômico do Irã”.

O professor Robson Valdez argumentou que o presidente dos EUA não aceitou o acordo mediado pelo Brasil e pela Turquia porque considerava que esses países médios “não tinham relevância e capital político internacional para liderar um acordo dessa envergadura”.

Moniz Bandeira também citou o argumento do aiatolá Ali Khamenei e do presidente Ahmadinejad para não desenvolver a bomba atômica: “A posse de armas nucleares somente daria ao Irã uma pequena vantagem regional de curto prazo que se transformaria em uma vulnerabilidade em longo prazo, ao desencadear no Oriente Médio uma corrida armamentista, com participação do Egito, Turquia e Arábia Saudita”.

Três anos depois, em 2015, Obama conseguiu costurar um novo acordo com o Irã: o Plano de Ação Integral Conjunto (JCPOA). Este pacto visava limitar as atividades nucleares de Teerã em troca do alívio de sanções. O plano contou com a participação dos cinco países-membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas (China, Rússia, França, Reino Unido) além da Alemanha, e resultou no descongelamento de ativos iranianos estimados em US$ 100 bilhões.

O Irã se comprometeu a modificar sua matriz de produção nuclear para inviabilizar a fabricação de plutônio, que, assim como o urânio, pode ser usado em bombas nucleares. Após a celebração do acordo, a AIEA confirmou em janeiro de 2016 que o Irã estava cumprindo sua parte.

Segundo o professor Robson Valdez, esse acordo de 2015 era similar ao mediado pelo Brasil e foi sistematicamente boicotado por Israel. “Foi um processo intenso de lobby israelense, principalmente, dentro dos EUA e na Europa. A ideia era influenciar a opinião pública e foi bem-sucedido. Uma das promessas de campanha do primeiro governo Trump era justamente sair do acordo, campanha que contou com financiamento do lobby israelense”, disse Valdez.

Em 2018, de forma unilateral e sem consultar os parceiros europeus, os EUA se retiraram do acordo e reimplantaram sanções contra o Irã, aumentando as tensões no Oriente Médio. As nações europeias ainda tentaram salvar o Plano de 2015, mas sem sucesso. Ao anunciar sua decisão, o então presidente Donald Trump classificou o acordo como “desastroso” e afirmou que ele “jamais deveria ter sido firmado”, por não garantir que o Irã havia abandonado mísseis balísticos.

O cientista político Ali Ramos avalia que Trump rompeu com o acordo não por falhas no cumprimento por parte do Irã, mas para satisfazer os setores mais conservadores que apoiavam seu governo, que enfrentava problemas internos. “Foi uma tentativa de conseguir popularidade em casa, tentando mostrar força. Com a irresponsabilidade de Trump, ele criou um dos problemas mais complexos da geopolítica do século 21. Tudo isso só para conseguir apoio interno”, comentou.

AIEA e o futuro da diplomacia
O governo do presidente Joe Biden manteve a situação inalterada, sem fechar um novo acordo com o Irã. No atual mandato de Trump, Teerã retomou as negociações com Washington em Omã. As conversas avançavam para a sexta rodada quando Israel atacou o país, levando o Irã a suspender as negociações e a acusar os EUA de cumplicidade com Netanyahu.

O especialista Ali Ramos explicou que as negociações giravam em torno da possibilidade de o Irã poder enriquecer urânio até 20% para ter capacidade “de produzir isótopos para tratamento de câncer, para tratamento de leucemia, essas questões”.

Um dia antes do ataque, a AIEA aprovou uma dura resolução afirmando que o Irã não estava cumprindo suas obrigações do TNP. Segundo o documento, “a Agência não está em condições de garantir que o programa nuclear do Irã é exclusivamente pacífico”. O Irã reagiu, classificando a decisão como “politicamente motivada” e acusando as potências ocidentais de orquestrar a resolução.

O analista em geopolítica Ali Ramos afirmou que todas as inspeções estavam sendo realizadas regularmente e que houve uma mudança na postura da agência a partir de 2024. “A AIEA tem no seu site que os inspetores estavam lá. Todas as inspeções estavam sendo feitas regularmente. E aí depois houve uma grande virada de chave, quando o Netanyahu começou a sinalizar que queria atacar o Irã, aí a agência mudou o discurso”, observou.

Ali Ramos acrescentou que esse tipo de manobra não é novidade no cenário internacional, citando a Guerra da Coreia, que foi travada com tropas da ONU “sem base legal nenhuma”. “Basicamente, são os organismos multilaterais sendo usados como braços de Israel e dos EUA. É preciso lembrar que estamos em um momento de destruição total do direito internacional. Não vai sobrar mais direito internacional depois dessa guerra”, finalizou. Com informações da Agência Brasil

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