Estudo inédito do Instituto Butantan sugere que filhotes de cobras-cegas são alimentados com leite materno
Pesquisadores do Instituto Butantan, órgão ligado à Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, apontaram em estudo que os filhotes de cobras-cegas, anfíbios também conhecidos como cecílias, são alimentados pelas mães, no início de suas vidas, com uma substância composta de nutrientes que se assemelha ao leite e é secretada pela cloaca. A descoberta foi publicada na revista científica Science, uma das mais prestigiosas do mundo.
O artigo faz parte das linhas de pesquisa do Butantan desenvolvidas na área de Biologia Animal e tem como primeiro autor o biólogo Pedro Luiz Mailho-Fontana, que fez toda a sua formação acadêmica (especialização, mestrado, doutorado e pós-doutorado) sob a orientação do pesquisador Carlos Jared, diretor do Laboratório de Biologia Estrutural.
As cecílias, pertencentes à ordem Gymnophiona, são serpentiformes e possuem olhos muito reduzidos, pois vivem estritamente no mundo subterrâneo (ou fossorial). O artigo publicado tem como foco o cuidado parental da espécie Siphonops annulatus, encontrada em praticamente todo o sul da América do Sul. Os indivíduos estudados foram coletados na região cacaueira do sul da Bahia, em meio à Mata Atlântica.
Para entender o estudo, é preciso retornar ao início da história evolutiva das cecílias. Há dezenas de milhões de anos, todas elas nasciam por meio de ovos – ou seja, a espécie era ovípara. Com o tempo, surgiu um grupo que, em função da instabilidade do meio ambiente, com a possibilidade de ocorrerem períodos muito secos, começaram a reter os ovos dentro do corpo, criando as chamadas cecílias vivíparas. “Esse fato ajudou a preservar esses animais, já que os anfíbios em geral possuem ovos gelatinosos e facilmente dessecáveis”, explica Carlos Jared.
Há cerca de 70 anos, foi descoberto que as fêmeas dessas cecílias vivíparas produzem alimento nas paredes dos ovidutos – canal pelo qual o ovo passa dos ovários para fora do corpo, e que é usado para alimentar os filhotes durante a gestação. Para tanto, os filhotes contam com dentes embrionários (ou dentes fetais), que são utilizados para extrair o alimento dos ovidutos.
Mais tarde, em 1990, uma nova observação, agora nas cecílias ovíparas, mostrou que as mães da espécie, que se enrolam e mantêm os filhotes aninhados, mudam de cor durante o cuidado parental. Durante esse tempo, elas passam do azul chumbo (a cor comum entre os machos e fêmeas) para um tom esbranquiçado e opaco. Filmagens mostraram que essa mudança de cor é resultado de outro comportamento inusitado dos filhotes, que se alimentam da pele da mãe também utilizando dentes embrionários.
Em 2006, a equipe de Jared publicou um estudo sobre o tema, comparando mães de cecílias ovíparas dentro e fora do cuidado parental. No artigo, os pesquisadores relatam que existem, no interior da epiderme das cecílias, gotículas de lipídios que, juntamente com a composição proteica da pele, compõem uma rica fonte de nutrientes. Esse tipo de alimentação ficou conhecido como “skin feeding” ou “dermatofagia”. Mas uma dúvida permaneceu: a que se devia o espantoso crescimento dos recém-nascidos, que se alimentam da pele lipídica e proteica da mãe somente uma ou duas vezes por semana.
Sobre o novo artigo
É justamente essa questão que o artigo publicado recentemente na Science responde. Assim como as cecílias vivíparas, as ovíparas possuem glândulas nas paredes do oviduto que produzem uma substância viscosa e transparente, que é expelida pela cloaca e alimenta os filhotes fora do corpo da mãe. A análise bioquímica realizada na secreção mostrou que ela é muito rica em carboidratos e ácidos graxos, uma composição semelhante à encontrada no leite dos mamíferos.
A substância é liberada várias vezes ao dia e ingerida vorazmente pelos filhotes. Durante a ejeção, as pequenas cecílias competem por lugares ao redor do orifício cloacal, muitas vezes introduzindo as suas cabeças nele quase que inteiramente.
O cuidado parental dura em torno de dois meses após a eclosão dos ovos, que sempre ocorre no início do ano, estação quente e com muita chuva. As glândulas secretoras do leite se desenvolvem no oviduto durante esta época, juntamente com a mudança de cor da pele das fêmeas.
Durante o estudo, os pesquisadores do Butantan também observaram que, nesta fase, os bebês emitem sons concomitantemente a estímulos táteis. Ao que parece, existe uma associação entre a emissão desses sons e a liberação de leite. Em resumo, o animal pede pelo alimento assim como as crianças humanas choram quando estão com fome. Essa emissão de som tem a ver com a escuridão do ambiente das cecílias, animais não orientados visualmente.
Os cientistas constataram que os filhotes das cobras-cegas consomem o leite cloacal pelo menos quatro vezes mais do que o alimento proveniente da ingestão de pele. “Parece evidente que o leite das cecílias ovíparas é semelhante à secreção nutritiva das cecílias vivíparas. Ao longo da evolução, as cecílias de ambientes áridos e desfavoráveis desenvolveram uma espécie de ‘gravidez’, adquirindo a capacidade de reter ovos que, nos anfíbios em geral, são frágeis e possuem somente uma cobertura gelatinosa. Essa foi a forma desenvolvida para evitar a dessecação dos ovos, dando possibilidade dos filhotes se desenvolveram na segurança do oviduto materno e esperando por condições ambientais favoráveis”, completa Carlos. Com informações da Assessoria de Comunicação do Instituto Butantan.