Racismo ambiental em Belém: moradia precária expõe contradições da COP30

Às margens da baía do Guajará, no coração de Belém, a comunidade da Vila da Barca, com quase um século de história, é o retrato das desigualdades sociais e climáticas que persistem no Brasil. O bairro, um dos maiores assentamentos urbanos de palafitas da América Latina, contrasta fortemente com a vizinhança luxuosa da região das Docas, que recebeu grandes investimentos para sediar a 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP30).

A fragilidade das moradias de madeira, construídas sobre estacas para lidar com as variações da maré, torna a vida da população uma luta constante contra o tempo. Moradores antigos, como a aposentada Cleonice Vera Cruz, de 77 anos, relatam o risco iminente de desabamento. O medo se materializou recentemente, quando uma casa desmoronou na madrugada de uma sexta-feira, alertando para o fato de que a crise ambiental é inseparável da crise habitacional e social, atingindo principalmente as populações marginalizadas.

O presidente da Associação de Moradores da Vila da Barca, Gerson Siqueira, questiona a falta de foco nas pessoas mais vulneráveis durante os debates globais. Segundo ele, as discussões da COP30 enfatizam a transição energética e o financiamento, mas dedicam pouca atenção à moradia digna e à proteção de quem vive em áreas de risco, muitas vezes sem acesso a saneamento básico e água de qualidade na Amazônia.

Estudo mapeia o racismo ambiental no país
A tragédia na Vila da Barca é um reflexo do que organizações chamam de racismo ambiental. Um estudo apresentado pela ONG Habitat para a Humanidade Brasil na COP30 revelou que dois terços da população residente em áreas de risco (66,58%) são formados por pessoas negras. O levantamento, que cruzou dados de 129 cidades, apontou que 37,37% desses lares são chefiados por mulheres, e a renda média nessas comunidades é de apenas R$ 2.127, o que equivale a 55% da média geral das cidades analisadas. Além disso, 20,29% dos domicílios em risco estão sem coleta de esgoto e 2,41% não têm coleta de lixo adequada.

Esse cenário se encaixa no perfil de Maria Isabel Cunha (Bebel), diarista e mãe solo na Vila da Barca, que depende da pensão de um dos seus filhos, que possui deficiência, e de faxinas esporádicas. A fragilidade social se traduz na vulnerabilidade habitacional.

No período de 2013 a 2022, o país registrou cerca de 2,1 milhões de casas danificadas e 107 mil destruídas por eventos climáticos extremos. Raquel Ludermir, gerente de incidência política da Habitat Brasil, afirma que esses dados “evidenciam a questão do racismo ambiental”, já que a maioria das vítimas é de baixa renda e negra.

Adaptação e permanência exigem infraestrutura
A Vila da Barca, que abriga mais de mil famílias em cerca de 600 moradias de palafitas, busca melhorias urgentes. Recentemente, foram iniciadas obras de instalação de um sistema de abastecimento de água e tratamento de esgoto, orçadas em R$ 15 milhões. A comunidade conseguiu garantir a instalação de hidrômetros individuais e um sistema de tarifa social.

No entanto, a luta principal da comunidade é pela garantia de permanência com dignidade. Gerson Siqueira questiona por quanto tempo o Estado permitirá que as famílias continuem morando em estruturas tão precárias. O desejo dos moradores é ter um conjunto habitacional que ofereça moradia digna com a infraestrutura necessária para o pleno desenvolvimento de suas vidas no local.

A ONG Habitat Brasil aponta que o foco em moradia é insuficiente nas políticas climáticas globais. Apenas 8% das metas climáticas voluntárias apresentadas pelos países (NDCs) tratam das questões urbanas, favelas e comunidades, falhando em prover planos e financiamento para lidar com a emergência climática que danifica moradias.

Raquel Ludermir reforça a defesa pela permanência das comunidades, desde que haja melhores condições de segurança, habitabilidade e adaptabilidade, fortalecendo a resiliência local. Ela alerta para o perigo de falsas soluções que, em nome da adaptação climática, acabam justificando a remoção de comunidades inteiras. Com informações da Agência Brasil

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